Apenas decisão judicial temporária impede derrubada de casarão de 1830 que foi da personagem ligada à história de Araxá. Iepha e MP se esforçam por reconhecimento da importância do imóvel


postado em 13/07/2018 06:00 / atualizado em 13/07/2018 12:46

Mesmo abandonada, construção da Praça Coronel Adolpho ainda chama a atenção pela imponência. Último uso foi como pensão(foto: Ministério Público de Minas Gerais/Divulgação)

União de forças para salvar um casarão ícone da turística cidade de Araxá, no Alto Paranaíba. Moradores e defensores do conjunto arquitetônico do município criticam a decisão do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural (Compac), que deu sinal verde para a demolição do prédio da Pensão Tormin, no Centro, que, conforme historiadores, pertenceu a Anna Jacintha de São José, a célebre Dona Beja ou Beija (1800-1873). Segundo denúncias, a propriedade particular seria derrubada para dar lugar a um estacionamento. Ontem, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG) se uniu ao esforço de preservação e informou que fará estudos para salvar o imóvel localizado na Praça Coronel Adolpho. Embora sem tombamento em qualquer esfera, o imóvel tinha inventário municipal para proteção, condição que perdeu em reunião do Compac, abrindo brecha para que saia de cena e se torne mais um retrato na parede das memórias de Minas.

 

Um dos mais indignados com a situação é o promotor de Justiça da comarca, Márcio Oliveira Pereira, certo de que o objetivo dos proprietários, donos de um grupo hospitalar, é deixar o imóvel, hoje vazio, cair: “Tentamos várias vezes a conciliação, pois se trata de bem cultural importante para Araxá. Nada adiantou”. O promotor acrescentou que já havia até conseguido verba para a perícia histórica e arquitetônica, a fim de provar a relevância do imóvel. “Falam que ele teria sofrido uma reforma em 1908, para descaracterizá-lo. Mas, vejam, estamos falando de algo realizado há mais de 100 anos”, destaca. Em 2011, o Ministério Público de Minas Gerais ajuizou ação, com pedido de liminar, para impedir a destruição e denunciando o município por omissão na preservação.

Na tarde de ontem, o juiz da 3ª Vara Cível da comarca, Rodrigo da Fonseca Caríssimo, informou que pelo menos durante o prazo de 30 dias o prédio não poderá ser demolido – o período se refere ao tempo que o MP tem para recorrer ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) de decisão do magistrado que julgou improcedente ação da promotoria que cobrava a preservação do imóvel. “Por cautela, fica mantida a liminar que impediu a demolição do imóvel”, destacou. No entanto, está aberto o caminho para derrubada do casarão, exatamente pelo fato de o Conselho do Patrimônio local ter deliberado que a construção não tem relevância histórica. “Com a decisão do Compac, que deliberou sobre a falta de valor histórico do bem, não há mais omissão do poder público municipal, nem necessidade de perícia”, escreveu o juiz, em sentença. O promotor explica que vai recorrer tão logo seja notificado pela Justiça.

INVENTÁRIO

Em nota, o Iepha informou que, com base no inventário de proteção do acervo cultural enviado ao instituto pela administração municipal de Araxá, será publicado no diário oficial Minas Gerais, nos próximos dias, a deliberação ad referendum do Conselho Estadual de Patrimônio (Conep) para abertura de estudos a fim de proteger o imóvel. “A ação tem o intuito de promover articulação entre a gestão municipal e o atual proprietário do imóvel, para viabilizar o reconhecimento da edificação como patrimônio cultural e sua efetiva conservação”, informou o órgão patrimonial do estado.

A polêmica teve início quando o antigo proprietário quis derrubar o imóvel para construir um galpão, que seria usado pela loja de uma rede nacional de varejo. Na época, o então juiz da 3ª Vara Cível, Ibrahim Fleury de Camargo Madeira Filho, concedeu liminar em ação do MP suspendendo a demolição do imóvel. Como o caso ganhou muita repercussão, a rede de lojas desistiu do negócio, com comercialização posterior do imóvel para um grupo hospitalar.

Endereço para vários sobrenomes

Os defensores da preservação do sobrado associado à história de Dona Beja sustentam que ele é um dos poucos remanescentes da história de Araxá. “Restou muito pouco, sendo um deles o casarão construído em 1830, que antes era ocupado pela pensão e depois ficou vazio. Manter o prédio é fundamental para preservar nossa história, já que não temos bens tombados”, diz um morador local que prefere não se identificar, pois o assunto desperta intensa polêmica na cidade. O sobrado, inventariado há 20 anos pelo município, seria desapropriado pela prefeitura, restaurado, e destinado à cultura. A antiga pensão fica perto do Museu Dona Beja, abrigado em casarão que foi comprado em 1964 por Assis Chateaubriand (1892-1968), fundador dos Diários Associados, e doado à comunidade.

Assessores da prefeitura local preferem não falar sobre o tema, sob a justificativa de que o imóvel é particular e o processo tramita na Justiça, o mesmo ocorrendo com a presidência do Compac, que preferiu não dar declarações “por telefone”. Enquanto isso, até moradores de municípios vizinhos apoiam a luta em Araxá. “Estamos fazendo o que podemos, principalmente pelas redes sociais, para impedir a derrubada do casarão. O objetivo é mobilizar a população”, disse a historiadora Maria Aparecida Rodrigues Manzan, residente em Uberaba.

“Araxá é importante para todo o Triângulo Mineiro, pois deu origem à maioria das cidades. Embora muitos questionem a importância histórica de Dona Beja, é inegável sua participação na vida cultural, econômica e política da região”, afirma Maria Aparecida. Ela explicou que Dona Beja teria morado até 1840 na cidade do Alto Paranaíba.

PESQUISA 

A história do sobrado foi pesquisada pela professora universitária Glaura Teixeira Nogueira Lima, autora de livros e artigos para jornais de Araxá. Ela escreveu: “À Praça Coronel Adolpho, vê-se uma casa permeada de histórias, tanto quanto foram muitos seus proprietários ou inquilinos e inúmeras as funções que ocupou nos últimos dois séculos. Trata-se da Pensão Tormin, instituição tradicional fundada pela família de descendentes de italianos e, felizmente, hoje preservada pela terceira geração deles. O sobrado mantém-se como prova material de uma construção associada historicamente, também, a Dona Beja, às famílias Afonso de Almeida, Botelho, Vieira Machado, Ávila, Paiva, Magalhães, Scarpellini, Rosa e Rodrigues Valle”.

Doutora em história, a professora Glaura descobriu que, durante a primeira metade do século 20, o prédio serviu de sede de escolas particulares e de hotel, antes de se tornar, a partir de 1943, pensão. “Situada entre as casas das famílias Costa Pereira, à direita, e Amado de São Paulo, à esquerda, o casarão fora construído nas décadas iniciais do século 19 por Dona Beja, conforme ela mesma declarou oficialmente. O memorialista Sebastião de Affonseca e Silva (1877-1968), notório admirador da personagem, já afirmava isso.”

E mais: “É possível que, após a partida de Anna Jacintha para Estrela do Sul, motivada por um período de estagnação econômica na então Vila de São Domingos do Araxá, ali tenha sido, por algum tempo, um lugar para acolher desabrigados. Tal destinação alterou-se quando ela vendeu o imóvel com o amplo terreno, em 1864, para Ignácio Afonso de Almeida”, escreveu a especialista, acrescentando que daí em diante o sobrado foi revendido por sucessivas vezes. Em reportagem publicada pelo Estado de Minas em 17 de junho de 2011, técnicos da Fundação Cultural Calmon Barreto informaram que o prédio, antes em estilo colonial, sofreu a última intervenção na fachada em 1908.

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