A Constituição Federal Brasileira estabelece em seu artigo 225, caput, que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Para assegurar a efetividade desse direito, segundo o parágrafo 1º, inciso III, do dispositivo citado, incumbe ao Poder Público definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção.
Em resumo, as normas constitucionais em análise estabelecem:
a) Que o direito ao meio ambiente pertence a todos (natureza difusa) e que é dever do Poder Público e da coletividade preservá-lo (princípio da intervenção obrigatória), para as presentes e futuras gerações (princípio da solidariedade intergeracional);
b) Que incumbe ao Poder Público definir espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos (princípio da proteção);
c) Que a alteração e supressão de tais espaços somente pode ocorrer através de lei (reserva legal para alteração ou supressão de áreas protegidas);
d) Que é vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justificaram a proteção do espaço territorial (princípio do uso compatível).
Os comandos acima elencados guardam pertinência com o pensamento conservacionista mundial, cabendo-nos lembrar que, de acordo com a União Internacional para Conservação da Natureza (UICN), a instituição de áreas protegidas constitui uma das mais importantes estratégias, em âmbito nacional e internacional, de preservação ambiental, inclusive para a proteção de comunidades humanas e de lugares de grande valor cultural e espiritual No Peru, por exemplo, o Sistema Nacional de Áreas Naturais Protegidas (Sinanpe), prevê a categoria específica dos Santuários Históricos, que além de proteger espaços naturais relevantes, abrigam mostras do patrimônio cultural monumental do país (como o Santuário Histórico de Machu Picchu) e das reservas paisagísticas, que protegem ambientes cuja integridade geográfica mostra uma relação harmônica entre o homem e a natureza, abrigando valores naturais, culturais e estéticos.[2] Em consonância, no Brasil, incorporando o conceito holístico de meio ambiente (que não se resume aos elementos meramente naturalísticos) o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (que abrange parte significativa das modalidades de áreas protegidas do país) tem como um de seus objetivos exatamente “proteger as características relevantes de natureza geológica, geomorfológica, espeleológica, arqueológica, paleontológica e cultural” (Lei 9.985/2000, art. 4º, VII). De acordo com definição da UICN, uma área protegida compreende: um espaço geográfico claramente definido, reconhecido formalmente, destinado e gerido mediante meios legais ou outros tipos de meios eficazes para alcançar a conservação a longo prazo da natureza, de seus serviços ecossistêmicos e seus valores culturais associados. Por tal definição, são características essenciais de uma área especialmente protegida: 1) Espaço geográfico definido; 2) Reconhecimento oficial; 3) Submissão a regime jurídico especial de proteção com fins de conservação; 4) Presença de atributos naturais ou culturais que justifiquem o reconhecimento[3]. Nessa toada, uma pergunta de grande relevo prático e importantes consequências jurídicas se coloca ante tal panorama: os imóveis tombados em razão de seus atributos históricos, culturais e paisagísticos podem ser considerados, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, como espaços territoriais especialmente protegidos? A resposta nos afigura como positiva. Por primeiro, é preciso ressaltar que a melhor doutrina nacional reconhece que os espaços territoriais especialmente protegidos (ETEPs) não se resumem às unidades de conservação nominadas pela Lei 9.985/2000, que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Com efeito, como bem ressalta Antônio Herman Benjamin: … toda Unidade de Conservação é área especialmente protegida, mas a recíproca não é verdadeira, pois a própria Constituição Federal traz exemplos de biomas que recebem tutela especial (Amazônia, Mata Atlântica, Pantanal) e, nem por isso, são, na sua totalidade, Unidades de Conservação. Bem a cabo a lição abalizada do mestre José Afonso da Silva para quem: “Nem todo espaço territorial especialmente protegido se confunde com unidades de conservação, mas estas são também espaços especialmente protegidos”. [4]
Em assomo, importante perceber que os bens tombados são individuados mediante a localização e delimitação da coisa protegida, que é inscrita no Livro do Tombo; são reconhecidos formalmente pelo Poder Público por meio de um procedimento administrativo; estão submetidos a um regime jurídico especial de proteção que veda a destruição ou mutilação da coisa, impondo a sua conservação, vigilância, além de outras limitações; e se voltam para a proteção de conservação de atributos culturais ou naturais, tais como núcleos históricos, sítios arqueológicos, paisagens notáveis etc.[5]
Por tudo isso, os bens imóveis tombados inserem-se no conceito amplo de espaços territoriais especialmente protegidos e estão ao abrigo da norma constitucional estabelecida no art. 225, 1º., III da Carta Magna. Nesse cenário, duas consequências jurídicas lógicas essenciais resultam do entendimento exposto: Quanto ao primeiro aspecto, a imposição constitucional não admite exceções, como se extrai da seguinte doutrina de Herman Benjamin: Como nota Paulo Affonso Leme Machado, autor intelectual deste particular segmento da Constituição (inspirado na Convenção Africana sobre a Conservação da Natureza, de 1968), “a norma constitucional não abriu qualquer exceção à modificação dos espaços territoriais e, assim, mesmo uma pequena alteração só pode ser feita por lei”. Nesse ponto, mais do que alterações pontuais ou físicas no interior de uma Unidade de Conservação, o legislador teve em mente a modificação de status jurídico, quer pela redução física do espaço de aplicação do regime especial, quer pela descaracterização de seus elementos normativos de controle da fruição.[6] O pensamento que sustentamos sobre a extensão do dispositivo constitucional referido às áreas protegidas por tombamento, já havia sido perfilhado, conquanto com enfoque mais restrito, pelo eminente doutrinador e saudoso amigo José Eduardo Ramos Rodrigues, que escreveu[7]: Concluindo, os bens naturais tombados pelo seu valor ecológico, paisagístico ou científico, de forma individual ou em conjunto, ocupando espaços territoriais como uma Serra do Mar, um parque como o Ibirapuera, uma praça ou de tamanho a abrigar uma única árvore, já que a Carta Magna não distinguindo dimensões não autoriza o intérprete da lei a fazê-lo, podem ser compreendidos como unidades de conservação em sentido amplo e, como tal, espaços territoriais especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem a sua proteção, conforme o art. 225, § 1º., inc. III. Em razão disso, por evidente incompatibilidade hierárquica, o texto do Decreto-lei nº 3.866, de 1941, que prevê que o Presidente da República, atendendo a motivos de interesse público, poderá determinar, de ofício ou em grau de recurso, interposto pôr qualquer legítimo interessado, seja cancelado o tombamento de bens culturais, não foi recepcionado pela novel Carta Magna. Por simetria, o mesmo não pode ser feito por governadores ou prefeitos em relação a bens protegidos por tombamento em nível estadual ou municipal, evidentemente. No âmbito da Constituição do Estado do Espírito Santo, verifica-se que o entendimento acima exposto, fulcrado na inteligência do art. 225, § 1°, III da CF/88, foi plenamente adotado e encontra-se plasmado no art. 182, que dispõe: Os bens culturais sob a proteção do Estado somente poderão ser alterados ou suprimidos através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem a sua proteção. Com efeito, não pode mais o chefe do Poder Executivo decidir solitariamente sobre o destombamento de bens, posto que a supressão protetiva pressupõe, hodiernamente, a edição de lei em sentido estrito, como cláusula de garantia da análise democrática e fundamentada da retirada da proteção de um bem cultural, evitando retrocessos casuísticos motivados por interesses nem sempre confessáveis. E mesmo o âmbito da produção legislativa sobre a hipótese de alteração ou supressão dos espaços culturais protegidos não é ilimitado. A exceção à perenidade protetiva almejada pela Constituição, sob pena de violação à segurança jurídica, à proteção da confiança, e aos direitos adquiridos coletivos (vedação de retrocesso), só comporta aplicação em casos muito específicos, como o desaparecimento da coisa protegida (soterramento irreversível de uma ocorrência geomorfológica singular em razão de catástrofe natural, v.g.) ou comprovação de erro essencial sobre a motivação da proteção anteriormente conferida (descoberta de que um jardim botânico centenário, protegido em razão de ter sido supostamente projetado por determinado paisagista de renome internacional, foi de fato, criação de um reles cidadão, v.g.). Quanto ao segundo aspecto acima exposto, conquanto não se possa tombar o uso específico de determinado bem, a utilização do bem tombado deve se dar de maneira conforme[8] à preservação dos atributos que justificaram o ato protetivo, não se admitindo usos abusivos ou que coloquem em risco a integridade do imóvel ou sua ambiência.[9]
Evidentemente, seria um rematado contrassenso impor a preservação de um bem por determinados motivos e colocá-lo sob ameaça em razão de usos que comprometam os atributos que serviram de justificativa para a própria intervenção estatal protetiva. Assim, não é possível se admitir a realização de manobras militares, com uso de artilharia pesada, em uma ilha tombada por sua beleza cênica e paisagística; a instalação de depósitos de explosivos ou combustíveis no núcleo histórico de uma cidade colonial tombada por sua relevância arquitetônica; ou a realização de rally de veículos pesados em um caminho histórico calçado com pedras há séculos, por exemplo. Na dúvida sobre a compatibilidade de determinado uso em relação ao bem tombado, deve ser adotado o princípio da prevenção (in dubio pro cultura) e exigida a realização de estudos de impacto ao patrimônio cultural para que o órgão competente, com base em sólidos elementos técnicos de convicção, possa autoriza-lo ou não, pois, em termos de patrimônio cultural, nosso ordenamento está orientado para uma posição de caráter fundamentalmente preventiva, voltada para o momento anterior à consumação do dano — o do mero risco. Marcos Paulo de Souza Miranda é coordenador da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural de Minas Gerais, especialista em Direito Ambiental, secretário da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente, professor de Direito do Patrimônio Cultural e membro do International Council of Monuments and Sites (ICOMOS) Brasil.
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